Numa decisão num daqueles dias em que apetece fazer tudo menos trabalhar, dei comigo a apagar e arquivar emails. Pelo meio encontrei este - que transcrevo - da autoria do meu querido amigo ACH.
ACH, não me leves a mal, mas como está brilhante acho que é de partilhar com todos... ou não fosse a cultura património de todos!
«“Uma espécime muito curiosa”: a nossa cultura
Estimados amigos do Barroso,
Com um lirismo róseo que remete a Cândida Branca-Flor para a categoria de Death-Metal, o site www.mundodacultura.com celebra entre, fotografias de girassóis sorridentes e palhaços floridos, a graciosa cultura deste nosso pequeno horto do Éden.
Vejamos o que ele diz sobre o concelho pátrio das nossas almas: Montalegre!
Quem queira rir-se directamente das puríssimas fontes vivas da nossa "coltura" vá até :
http://www.mundodacultura.com/concelhos/montalegre/patrimonio.htm
Quem não tem vagar ou quem prefira umas notas de rodapé da nossa modestíssima lavra (em humilde preto), contente-se com a versão comentada que se segue:
Montalegre - Patrimonio Cultural e Edificado
Advertência: não confunda “Patrimonio Cultural” com “patrimonio Edificado”.
Castelo (Montalegre)
"É sem dúvida um dos mais belos castelos medievais existentes no território Português. A sua fundação deve-se a D. Dinis, embora só tivesse sido concluido no reinado de D. Afonso IV. As suas quatro torres ligadas por uma muralha circular, tornam este Castelo numa espécime muito curiosa."
A fina hermenêutica do autor descortinou no foral de Montalegre de 1273, em que o rei D. Afonso III ordena a construção do castelo e póvoa, o que passara desapercebido aos olhares dos mais graves historiadores portugueses desde Rui de Pina a Alexandre Herculano: que a sua fundação se devia ao príncipe D. Dinis que, nas rebeldias tirânicas dos seus 12 anos obrigou o pai a fundar um castelo! E foi um castelo de “uma espécime” tão requintada, tão curiosa, que só pelo menos 54 anos depois, nos tempos do netinho D. Afonso IV, foi “concluido". É tal a curiosidade do edifício - quatro torres e muralha circular, cousa nunca vista! – que é possível que tenha sido o amorável infante a rabiscar o esquiço ou a juntar as pecinhas de lego para a maquete…
Pormenor de somenos: “a espécime” a que alude o insigne autor estava já completada em 1281 quando é oferecida como arras à Rainha Santa e o insigne futuro D. Afonso IV (o alegado rematador da obra) estava ainda reduzido à expressão de os cromossomas Y no dorso de um mero zigoto.
Igreja de São Vicente da Chã
"De fábrica romana rural, deve a sua fundação remontar ao século XIII. Pertenceu à comuna da Ordem dos Templários e do seu património sobressaem duas peças de grande valor: um crucifixo e uma pietá do século XII."
De facto, os romanos do século XIII eram exímios na edificação de fábricas rurais! Aliviando um pouco mais os inchados alforges da sua sapiência, o autor aviva ainda um pormenor pouco conhecido: a participação dos Templários no MFA e, sobretudo durante o Verão Quente, a sua organização incessante de comunas no interior transmontano, certamente estimulados pelos movimentos dos operários romanos da “fábrica rural”. As nacionalizações, nesta zona do país, afectaram também a propriedade eclesiástica, sendo neste caso particular desmembrada a Comenda de S. Vicente da Chã antes de ser incorporada na dita “comuna”. Só me espanta que tenham respeitado um crucifixo do século XII em vez de o substituírem por uma foice e um martelo. Quanto à “pietá” do “século XII”, eu arriscava dizer que não existem “pietás” do século XII porque é uma expressão típica do século XV. Mas eu também não sabia que a igreja de S. Vicente era de fábrica romana rural e só ao de leve tinha ouvido falar sobre as comunas dos Templários…
Convento de Santa Maria Das Júnias (Pitões)
"Pertenceu à Ordem de Cister e sua construção remonta ao período anterior à nacionalidade, possivelmente ao século XI. No entanto alguns historiadores, dizem que o Mosteiro pertenceu à Ordem de São Bento e que a sua origem remontaria ao século IX."
Talvez fosse possível congraçar as duas eruditas teses em confronto se nos lembrássemos que a Ordem de Cister é um ramo da Ordem de S. Bento. Quanto ao problema magno das origens antiquíssimas bastará dizer que existe uma pedra que tem gravada a data de 1147. Ou seja, segundo a interpretação do autor, anterior à “nacionalidade” que, a bem dizer, só começou no dia 25 de Abril de 1974, quando os templários desataram a nacionalizar. Aliás, 1147 muito é antes da nacionalidade, uma vez que por essa época os romanos ainda cá estão vivinhos da silva e ainda no século XIII se dedicavam pujantes a erguer fábricas rurais na região.
Casa do Cerrado (Montalegre)
"Solar do século XII foi residência do último alcaide de Montalegre. Possui pedra armoreada."
Um “Solar do século XII”? E eu que pensava que era um health-club do século X! Faltará saber em que consiste uma pedra “armoreada”… É evidente: granito com veios de mármore?! Ó fulgente luminária! Ó nunca assaz louvada erudição! Para este autor nem as subtilezas da ciência geológica são estranhas…
Solar do Morgado de Vilar de Perdizes
"Também é conhecido pelo Paço de Vilar. Solar do século XII, foi pertença dos "Pereiras & Morgados" de Vilar. Possui pedra armoreada."
Quem não ouviu falar dos grandes retalhistas “Pereiras & Morgados”? Todos já ouviram falar desses lendários sucessores e herdeiros dos “Sousas & Abades”. Devem ter sido eles que se tornaram sócios maioritários da botica. Tudo isto deve estar relacionado com o antiquíssimo restaurante “o Paço” que deu a este Solar do século XII a designação de Paço. Em todo o caso, eu sempre intuí um certo ar de família entre a casa do Cerrado e o “Paço de Vilar”/”Solar do Morgado”: os dois do século XII e os dois possuidores de pedra armoreada. Tais semelhanças escondem decerto uma intensa rivalidade, bem característica de casas comerciais de província pré-romana. Aliás, alvitro mesmos que estes ilustres boticários terão andado sempre de candeias às avessas com os “Mirandas & Alcaides” da Casa do Cerrado que lhes roubariam a clientela. É notável o número de pedras armoreadas neste concelho, em particular à entrada destes solares do comércio. Quando os emigrantes se aperceberem de mais essa graça da natureza indígena vão abandonar de vez as maisons de mármore para construir chateaus com pedras armoreadas.
Ponte da Misabela
"Trata-se de uma obra de arte construida pelos romanos, à semelhança de tantas outras, mas digna de maior apreço não só pelo sítio onde está implantada mas também pela tradição que o povo crente lhe atribui.
Serviu de passagem ao exército comandado por Soult na sua fuga estratégica, aquando das invasões francesas."
Que a “Ponte da Misabela” seja uma “obra de arte romana, à semelhança de tantas outras” ninguém duvida; que a Ponte da Misarela seja “romana” existem numerosas dúvidas e que se possa considerar uma ponte desses longes séculos como “obra de arte” também suscita alguma reserva crítica, excepto claro entre o “povo crente”. Esta crédula entidade, aliás, “atribui uma tradição” a esta obra de arte. Também “digna de apreço” é para mentes mais afeitas às manhas bélicas a genial “fuga estratégica” de Soult.
Castros
"Em número de 64, espalhados pelo concelho. De destacar o castro de Pedrário na freguesia de Serraquinhos, classificado já como imóvel de interesse público."
Nihil obstat. Tendo em conta o currículo do autor, atingimos uma fase depressiva na sua criatividade quase inexaurível. Serve para mostrar que até os mais fecundos espíritos fraquejam.
Antas ou Dolmens
"Existem diversos espalhados pelo planalto."
“Dolmens” nunca vi fora da Terra Média, muito menos no Barroso. No entanto cautela: numa rotunda à saída de Montalegre está um dessas antas e é garantido que os cadáveres que chocaram com ela andam “espalhados pelo planalto” (um pouco de humor seco).
Igreja de Santa Maria do Castelo
"Antiga Igreja Matriz é uma reconstituição da primitiva que serviu de culto religioso ao Castelo. O seu interior possui ainda bem conservada a talha original dos Altares."
Confirma-se portanto que o Castelo era “uma espécime muito curiosa”. O castelo era de tal forma invulgar que se dignava deslocar-se até à antiga igreja matriz para assistir ao culto religioso.»
sexta-feira, março 11
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1 comentário:
Parabéns por um texto bem escrito e com uma fineza de crítica que honra os pergaminhos desta lusa alma que é a deste povo de poetas e críticos do ridículo.
Não obstante, vai permitir-me uma pequena correcção (já que faz tantas no seu post): conforme é dito (e por si mal corrigido) no texto original, existem várias sepulturas da Idade do Bronze em Barroso. A questão é que estão quase todas (ou todas) enterradas no que seria o seu formato original, mau grado os diversos actos de pilhagem de que foram alvo, muitos deles camuflados sob a capa protectora de alegadas escavações arqueológicas (quem não se lembra de Martins Sarmento e de outros sucedâneos e das piratarias que levaram a cabo por este país afora, usando e abusando de um atraso cultural e científico generalizado...??).
Isto faz com que não sejam facilmente detectáveis (principalmente por quem não está disposto a vê-las). Digo isto sem ponta de ironia: se porventura quiser ver algumas destas sepulturas, com gosto lhe direi o local onde poderá apreciá-las, nem que para o efeito seja necessário recorrer à disponibilização de coordenadas geográficas. Mas, se conhece razoalvelmente Montalegre, deixo-lhe uma pista: siga em direcção a Meixedo, após deixar a Zona Industrial (sim, onde tem aquela rotunda com os penedos encavalitados). Páre na entrada da Quinta da Veiga. À esquerda da dita entrada, a cerca de 15 ou 20 metros tem aí uma dessas sepulturas.
Bom proveito!
Até sempre.
www.terrasdebarroso.blogspot.com
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